segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

Diários de uma ex moleca


               A profundidade do filme Diários de Motocicleta está na mesma profundidade em que planejamos nosso futuro sem saber se  presente nos levará a ele.  Guevara e Granado queriam apenas sair desbravando uma América que imaginavam, mas que não passava de idealismo. Como universitários que acreditam deter um conhecimento mais valioso que os outros, vão descobrindo a realidade, e mais, vão sentindo-a corpo a corpo, suor por suor, palavra por palavra. E vão percebendo que os conhecimentos não eram exatamente mais valiosos, e que a realidade era mais injusta e desigual do que imaginavam. Mas nada disso estava nos planos. Pelo menos não a dor que ela proporcionara.
                É um caminho sem volta. Eu também só queria entrar numa universidade, e aprender. Aprender não só com os professores, mas vivendo... Quando planejei minha viagem pela vida, não escolhi como roteiro um mundo em tons pastéis. Mas de repente, me vi ali, naquele tom pastel da terra seca dos nordestinos, com os gados magros e sem carne alguma. Me vi ali, conversando com aqueles companheiros que nasceram na mesma cidade que eu, mas estavam no meio de Minas Gerais lutando por um pedaço de terra fértil, já que o pedaço mínimo que tinham em sua cidade natal não lhes provia nada. Também não tinha planejado exatamente conhecer o Museu do Índio, que na verdade já havia deixado de ser museu e agora era uma ocupação de resistência índigena, com índios que lá estavam para lutar por serem minimamente respeitados e ouvidos numa terra em que um dia eles foram amigos e amantes (me recuso a falar que eles foram donos, pois duvido que algum dia tenham se sentido proprietários de alguma coisa da natureza) e que hoje eram massacrados, oprimidos, afastados... que a construção de um estádio de futebol, ironicamente nomeado com um nome tupi-guarani, “Maracanã” (semelhante a chocalho) seria mais importante que toda uma cultura indígena que havia se consolidado numa aldeia ali ao lado, que agora deveria ser demolida para a construção do estacionamento na copa, chocalhando toda a vida daqueles índios que nos receberam com tanta energia, com tanta fé, com tanta força.
                Também não fazia parte do meu roteiro, mas ao longo das curvas dessa viagem, não tive coragem de pedir para tantas mulheres se calarem quando contavam suas histórias de vida. E principalmente não achava que uma das paradas seria aquela escola de educação de jovens e adultos, em que 90% dos alunos eram mulheres senhoras, que contavam que estavam lá pois um dia tiveram que deixar de estudar em razão de sua família, pois os homens eram quem tinham o direito de estudar e trabalhar, ficando a responsabilidade da mulher fazer a comida, educar os filhos (que não significa alfabetizá-los), cuidar da casa, da roupa, e também do marido grosseiro, bêbado, e que vez ou outra na semana ou no dia-a-dia apanhavam ou escutavam grosserias. Nem imaginava que ia conhecer mulheres em depressão porque não eram aceitas por nenhum emprego porque eram “gordinhas” ou mulheres que vomitavam qualquer comida pelo medo de ficarem fora do peso. Mas raramente conheci homens que reclamavam ou que tiveram que deixar de estudar ou trabalhar. Nem homens bulimicos ou anorexos. Nunca ouvi nenhum homem contanto que apanhou de alguém que supostamente amava em função do álcool, ou porque aquela pessoa achou que simplesmente tinha o direito de agredi-lo.
                Numa das paradas, quando acordei com um morcego dormindo ao meu lado e com outros tantos voando, saindo daquele teto que estava despencando, ou quando vi aquelas baratas todas andando no meio do barraco.... quando vi mulheres se juntando para estudar e voltarem a estudar pois agora, depois de velhas, depois de terem conseguido criar seus filhos (a maioria fugiu com seus filhos do m(onstro)arido acreditavam que conseguiriam aprender a ler e escrever e conquistar um bom emprego. Quando, mesmo pela TV, vi pai e filho serem agredidos por terem sido confundidos como homossexuais... sempre pensei: não escolhi exatamente essa rota de viagem.
´              Concluo que a vida é assim, nós escolhemos um destino. Mas os caminhos que nos levam até ele nem sempre são certos, por mais tempo que passamos o planejando. Guevara e Granado ultrapassaram muitos dias do seu planejamento. Viveram grandes emoções, boas e ruins. Mas ainda quando nem imaginavam o que viriam a se tornar, já mudaram algumas vidas, tirando suas luvas de arrogância, de superioridade.
                Tiramos primeiro a luva, a barreira física que impede o real contato. Depois, tiramos a poeira que nos cega os olhos, que deixa nosso coração aflito... Tirei minha luva para tentar minimamente fazer  a diferença. Porque os caminhos pelos quais percorri, os fatos que aqui narrei, não tem e nunca tiveram placas de “RETORNO”. Mas tudo bem. Porque a realidade pode ser difícil, mas na vida real existem flores. Existem aromas, existem pássaros. A lua e o céu estrelado ainda aparecem em muitos lugares. E existe o amor. Independente do quão difícil seja o caminho, as flores e o amor sempre formam um arco-íris no horizonte, que nos guiam para nosso destino. O arco-íris reflete a esperança daqueles olhos. Olhos sem teto, olhos de mulheres, olhos dos homossexuais, olhos dos índios. Olhos que em meio a tempestade refletem o arco-íris do coração. E que Guevara conseguiu alcançar em sua viagem, e que Granado também encontrou.
                Acho que cada estrada mostra um arco-íris diferente. Na minha íris, as cores pastéis e fortes se mesclam depois de tanta realidade diferente. Uma aquarela tem sido pintada. Em meio a tempestades e secas, imagens desfocadas e nítidas.
                Não sou tão pretenciosa a ponto de pensar que chegarei no mesmo destino que Che. Mas tenho certeza que tenho conquistado pequenas revoluções. E que tenho ajudado muitos a pintar o quadro de suas vidas, registrando cada etapa da viagem. E aprendendo, e revolucionando tantos outros arcos oculres, devolvendo cor a tantas outras íris.
                E é claro, que venham outras tantas aventuras. E outros tantos caminhos. Meu destino é só um: justiça, amor e paz. Os caminhos? Estão na mão de Deus, como sempre me foi ensinado... nunca fazemos uma mala do tamanho que não conseguimos carregar, certo? Pelo menos eu, não.

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